sábado, 23 de junho de 2012

Reunião 20.05.2012 - CONVERSATIO MORUM - VIRTUDES

VIRTUDE DA JUSTIÇA

Para Platão, a justiça é uma qualidade da alma. “Justo é o ser humano cuja vida corresponde à sua própria essência.” Aristóteles, porém, já considera a justiça como uma virtude social. “Justo é quem intermedeia sem parcialidade entre dois grupos rivais; justo é quem julga direitinho, sem olhar suas próprias necessidades, dando a cada um o que ele tem direito.”
Para Tomás de Aquino justiça é a atitude “em virtude da qual alguém, com vontade firme e constante, atribui a cada um o seu direito. Para Tomás é  um agir. Só que não basta fazer o que é justo, temos que ser justos.
Essa virtude reside na nossa vontade e regula nossos deveres rigorosos para com o próximo. Não tem nada a ver com a caridade (amor ao próximo). Ela faz residir a paz na vida individual e na social. Faz reinar a honradez, reprime injustiças, estabelece ordem, protege os direitos dos pequenos e humildes. Sem ela seria o triunfo do mal.
Na Bíblia, significa santidade. O evangelista Marcos descreve José como homem justo. Mas analisando os fatos, vemos que José combina “justiça com misericórdia”. Para Mateus, justiça é o caminho da obediência à vontade de Deus, fazendo ao mesmo tempo o que é certo com relação aos outros. Novamente, José é um exemplo de homem justo, conformado com a vontade de Deus.
A justiça cristã é uma participação da justiça do próprio Deus. O Espírito Santo a faz penetrar nas profundezas de nossa alma e a torna inacessível à corrupção e acrescenta-lhe tamanha solicitude pelos direitos de outrem que nos causam horror as menores indelicadezas.
São Bento exige do abade que se dedique a cada um, adaptando-se a maneira de ser de cada um.Deve corresponder ao caráter e à capacidade de cada um, adaptar-se a todos com total compreensão. Não é tratar a todos da mesma maneira. É evitar acepção de pessoas e amar mais a um que a outro. É procurar entender a cada um individualmente e perguntar a si mesmo o que ele precisa. Ele recomenda ao abade que não pode alegar a exiguidade da renda para deixar de fazer justiça a cada um. Pelo contrário, cada um deve sempre ser estimado de acordo com sua dignidade. Não deve ser valorizado só pelo que produz.
Para o Abade o mais importante deve ser o Reino de Deus e sua justiça.  Reino de Deus quer dizer que Deus deve reinar. A vontade de Deus deve ser feita. Tudo que se fizer deve corresponder à vontade de Deus. E  a vontade de Deus é sempre o que é bom ao ser humano. O Reino de Deus está onde nós correspondemos ao bem do ser humano e à natureza deste, criada por Deus.
Reino de Deus significa também que Deus deve reinar no coração do ser humano. Não devo ter segundas intenções como ambição, raiva, inveja, vingança ou ódio. Quando Deus reina dentro de mim estou livre para servir aos outros. O reino de Deus cria dentro de mim clareza e sinceridade.

VIRTUDE DA VERACIDADE

 A virtude complementar da justiça é a veracidade. Não é somente dizer aos outros como as coisas são realmente, mas ser sincero consigo mesmo. Sincero e veraz é quem é internamente autentico e verídico, e que mostra também para fora o que está dentro de si. Não se dissimula diante dos outros, mas se apresenta como é na realidade. É livre de cálculos e renuncia a intrigas de qualquer espécie. Com quem é sincero os outros sabem como proceder. É incorruptível. Pode-se confiar nele.
A verdade não dispensa a caridade. A veracidade quando fica absoluta demais, pode tornar-se desumana. Para ser correta a veracidade precisa de caridade e prudência. O ser humano veraz deixa que a verdade de Deus ilumine a nossa sujeira interna, para que o impuro se aclare, e cada um consiga encarar serenamente a própria verdade e das pessoas ao redor. Só podemos agüentar a nossa própria verdade se a entregarmos a Deus. Diante de Deus sabemos que somos aceitos da maneira como somos.




VIRTUDE DA RELIGIÃO

Anexa à virtude da justiça temos a virtude da religião, definida no Catecismo da Igreja Católica como “..”. Ela nos faz prestar a Deus o culto que lhe é devido. A religião é um a virtude moral sobrenatural que nos inclina a prestar a Deus o culto que lhe é devido, por causa da sua excelência infinita e do seu supremo domínio sobre nós. Internamente submeter a Deus nossa alma, com suas faculdades, sobretudo inteligência e vontade. Os atos mais importantes são: adoração, gratidão, penitência e as orações. Deus é a fonte de todo bem. Estes sentimentos internos se manifestam por atos externos: sacrifício eucarístico; preces públicas oferecidas em nome da Igreja pelos seus representantes (Ofício Divino, Bênçãos do SSmo., orações privadas, juramentos e votos).

VIRTUDE DA OBEDIÊNCIA

Também é uma virtude anexa à da justiça.


NA VIDA DOS OBLATOS

Para pessoas piedosas, religiosos ou sacerdotes a obrigação de serem justos é muito maior. Devem dar exemplo de honradez como em todas as demais virtudes. Na RB podemos citar: Quanto á veracidade, podemos citar os seguintes versículos: Prologo 17; Prol 23; Cap 4 versiculos 22 a 33. E quanto á religião, Código Litúrgico, o Capitulo 4, o capítulo da Quaresma, da Medida da Comida e da Bebida. E também lembrar que S Bento afirmou a regra foi escrita para principiantes.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Reunião 12.02.2012 - CONVERSATIO MORUM - VIDA MONÁSTICA BENEDITINA

Conferência proferida por Ir. Maria de Nazaré Barros de Campos, OSB 

“Chamados a viver em comunhão em muitos níveis primeiro a comunhão com Deus na oração e na contemplação, em seguida a comunhão com as irmãs da comunidade local. Depois a comunhão com as Igrejas locais onde os Mosteiros estão estabelecidos e a Igreja Universal, como também a comunhão com os cristãos de outras denominações e membros de religiões não-cristãs. Por último, não devemos nos esquecer da comunhão com a sociedade civil e com todos os cosmos.” (D.A.Veilleux)
Assim, iniciamos nossos encontros mensais com algumas reflexões sobre um dos votos da Profissão Monástica Beneditina e uma das promessas da oblação. Trata-se da Conversatio Morum entendida algumas vezes como conversão, significa, na realidade, a observância de toda a Regra, ou seja, assumir outra maneira de viver, tendo como guia o Evangelho (Prol, 21) e a RB, sob a direção de um abade (abadessa) “nada antepondo ao amor de Cristo”.
É importante lembrar ainda que este seja o ano do Evangelista Marcos, cuja preocupação com o discipulado é muito clara. Para Marcos, na visão de alguns exegetas, os discípulos são o xodó de Jesus.
Seu Evangelho tem início com a vocação dos primeiros discípulos: Pedro, André, Tiago e João. Os dois primeiros discípulos aceitam o convite de Jesus imediatamente. Largam as redes de pesca e o seguem.  A formação acontece ao longo do caminho. Tiago e João deixam o pai e unem-se também a Jesus. Jesus promete fazer deles pescadores de homens – aproveitando o talento de cada um sabe capturar ou cativar.
No caso dos oblatos a vocação não os tira da família e do trabalho, mas a permanência neles assume outra forma.
Os instrumentos já não serão os mesmos uma vez que eles nos são dados por Nosso Pai São Bento na RB e incluem: a reverência a Deus através da obediência aos mandamentos, a reverencia aos irmãos com as obras de misericórdia, o serviço mútuo e um amor sem limites (amor ferventíssimo) – (RB 72)
Num total de 75 versículos São Bento nos desenreda do que pode criar obstáculos à nossa caminhada. Ele nos faz largar as redes que impedem nosso progresso espiritual.
Na Carta Apostólica “Porta Fidei” – A Porta da Fé, sua Santidade o Papa Bento XVI diz:
“Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé, que actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).”

Refletir sobre a Conversatio Morum nos remete aos inúmeros convites à vida interior encontrados na RB:



RB 4,20 - Fazer-se alheio às coisas do mundo.
RB 4, 55- Ouvir de boa vontade as santas leituras
RB 4, 56 – Dar-se freqüentemente à oração
RB 19 –  Cremos estar em toda parte a presença divina e que "os olhos do Senhor vêem em todo lugar os bons e os maus".  Creiamos nisso principalmente e sem dúvida alguma, quando estamos presentes ao Ofício Divino.  Lembremo-nos, pois, sempre, do que diz o Profeta: "Servi ao Senhor no temor".  E também: "Salmodiai sabiamente".  E ainda: "Cantar-vos-ei em face dos anjos".  Consideremos, pois, de que maneira cumpre estar na presença da Divindade e de seus anjos; e tal seja a nossa presença na salmodia, que nossa mente concorde com nossa voz.
RB 20 – Oração breve e pura
RB 52 – Oratório do Mosteiro
No Capítulo 48 São Bento nos apresenta os fundamentos sobre os quais nos movemos no dia-a-dia: oração, trabalho e lectio divina. A Lectio (leitura orante da Bíblia) alimenta a oração e o trabalho a partir do encontro com Jesus na Palavra. E no riquíssimo Ordo Litúrgico que compreende os capítulos de 8 a 18, o Salmo 118, com seus 176 versículos, é indicado para a recitação a partir do domingo. Hoje, essa meditação da lei é recitada nas três horas menores do domingo e de segunda-feira e na hora terça a de terça-feira. Nela a Lei é expressa com o uso de inúmeros verbetes: preceitos, vontade, mandamentos, palavra, ordens, caminhos, decisões, prodígios, julgamentos, desígnios, testemunhos, luz, lâmpada luzente, conselhos. Destacamos aqui alguns versículos desse Salmo que podem nos ajudar no caminho da interiorização.
V1 – Feliz o homem sem pecado em seu caminho, que na lei do Senhor vai progredindo;
V2 – feliz o homem que observa seus preceitos e de todo o coração procura a Deus;
V66 – Dai-me bom senso, retidão, sabedoria, pois tenho fé nos vossos santos mandamentos;
V89 - É eterna, ó Senhor, vossa Palavra, ela é firme e estável como o céu.
V97 – Quanto eu amo, ó Senhor, a vossa lei, permaneço o dia inteiro a meditá-la.
V105 – Vossa lei é uma luz para os meus passos é uma lâmpada luzente em meu caminho.
V116 – Sustentai-me e viverei como dissestes não podeis decepcionar minha esperança.
V173 – Possa eu viver para sempre vos louvar e que me ajudem, Ó Senhor, vossos conselhos.
Segundo São Basílio Magno: “verdadeira voz da Igreja, o salmo é a iniciação dos que começam o crescimento dos que progridem a estabilidade dos perfeitos.”
Continuando nossas reflexões sobre a Conversatio Morum vemos a vida beneditina enraizada em três dimensões: o compromisso com uma comunidade, a fidelidade a um modo de vida e a obediência. É o desenvolvimento de uma nova maneira de viver e uma abertura para os desafios da vida espiritual.
Monges e oblatos assumem o compromisso de conversão dos costumes, estabilidade e obediência conscientemente, diante de Deus e de todos os santos, na presença da comunidade, mostram a Carta de Profissão escrita do próprio punho ao presidente da celebração, à abadessa e à assembléia. Há um compromisso interior de irreversibilidade. Refletimos que o compromisso absoluto só é possível se o crescimento espiritual continuar e se a comunidade estimular o seu desenvolvimento. Caminhamos juntos, nos apoiando, “nada antepondo ao amor de Cristo, que nos conduza juntos para a vida eterna, como dia Nosso Pai São Bento na conclusão do Capítulo 72 “Do bom zelo que os monges devem ter”.
Em doze versículos São Bento resume o que tinha em seu coração nos falando da perfeição da caridade fraterna. Para Madre Aquinata, São Bento coloca os capítulos precedentes sob o signo do amor e da convicção de que Cristo é o centro de tudo. Esse capítulo traz a chave da hermenêutica para a leitura da Regra inteira.
O Prólogo em seus primeiros e últimos versículos desenha a orientação geral da RB e ao mesmo tempo evidencia a personalidade de São bento.
Os quatro primeiros versículos do prólogo estão ligados ao último capítulo: “Escuta (Prol) - Conseguirás(RB 73). A vida monástica é um CAMINHO para Deus tendo como objetivo a pátria celeste. A Sagrada Escritura, os ensinamentos dos Pais e a RB nos ajudam a avançar.
Prol, 3 - A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei.
RB 73, 8 – 9  -  Tu, pois, quem quer que sejas que te apressas para a pátria celeste, realiza com o auxílio de Cristo esta mínima Regra de iniciação aqui escrita e, então, por fim, chegarás, com a proteção de Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtudes de que falamos acima. Amém.

A primeira palavra da RB e a última têm uma importância especial. Escuta ...alcançarás, chegarás.
Repetindo: toda a RB se encontra entre essas duas palavras.
Escuta quer dizer obedece e alcançarás o objetivo, uma promessa feita a cada um de nós, pessoalmente.
A Escuta caracteriza toda a espiritualidade da RB e indica a prioridade da receptividade e da acolhida bem expressa no capítulo 53, da recepção dos hóspedes.
São Bento nos interpela a oferecer um espaço aberto hospitaleiro onde os estranhos possam livrar-se de sua estranheza. Dai-lhes uma acolhida em nosso coração. Palavras como ajudar, servir, cuidar, orientar são uma forma de acolher.
A hospitalidade beneditina não é simplesmente um lugar para dormir, é lar e família (Chittister).
Voltando ao Prólogo: a Conversatio Morum encontra-se também no versículo 2 “para que voltes pelo labor da obediência àquele de quem te afastaste pela negligência da obediência – Aqui está o caminho da RB: a vida sobre a Terra é uma volta para Deus.”
A Conversatio Morum conduz a Deus. As Sagradas Escrituras, as doutrinas dos Santos Padres e a RB são subsídios para a caminhada e a obediência é o elemento essencial.
Entendemos o discipulado beneditino como vocação para assumir uma maneira de viver com uma nova atitude da mente e orientação da alma.
Essa forma de viver nos leva à unificação uma vida espiritual que une corpo e alma – assim Nosso Pai São Bento constrói o monge beneditino.
U.I.O.G.D

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Corpus Christi - A Eucaristia como Sacramento de comunhão


Um outro nível de comunhão, exigido pela Eucaristia, é o da comunhão na mesma doutrina recebida dos Apóstolos e a comunhão com os legítimos pastores da Igreja, de modo particular com o Bispo de Roma, sucessor de Pedro e os Bispos em comunhão com ele. A quebra dos vínculos visíveis de comunhão torna impossível a comunhão no mesmo Corpo eucarístico do Senhor. A este propósito, assim se exprime o Santo Padre: “A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja, exige, para ser celebrada, um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de comunhão. De modo especial, sendo ela como que a perfeição da vida espiritual e o fim para que tendem todos os sacramentos requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Batismo e na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a comunhão a uma pessoa que não esteja batizada ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade, e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14,6; 18,37); o sacramento do seu Corpo e Sangue não consente ficções” (Ecclesia de Eucharistia, 38). Já no longínquo século I, Santo Inácio de Antioquia dizia: Vós vos reunis numa única fé e em Jesus Cristo, ao partirdes um único pão, que é remédio de imortalidade”. Para São João Crisóstomo, “esta é a unidade da fé: quando todos formamos uma só coisa, quando todos juntos reconhecemos o que nos une”. A unidade da fé recebida no Batismo é o pressuposto para sermos admitidos na unidade da divina Eucaristia, porque através dela entramos em comunhão com Aquele que acreditamos ser consubstancial ao Pai, segundo a fé que temos nele. Como se poderia, portanto, comungar Cristo juntamente com pessoas que sobre ele têm um credo diferente? Tornar-nos-íamos réus do Corpo e Sangue do Senhor (cf. 1Cor 11,27). A Igreja, que é mãe, sente dor e amor por todos os homens, pelos não crentes, os catecúmenos, os que andam longe da fé, mas não tem o poder de dar a comunhão aos não batizados, nem aos que não professam a fé católica e apostólica bem como aos que se encontram objetivamente numa situação contrária à moral cristã. Recebendo o único Pão, entramos nesta única vida em Cristo e entre nós e tornamo-nos assim um único Corpo do Senhor. Fruto da Eucaristia é a união dos cristãos, antes dispersos, na unidade do único Pão e do único corpo eclesial. É por esse mesmo motivo, que a comunhão eucarística só pode ser recebida na unidade com toda a Igreja, superando toda a separação religiosa ou moral.
É preciso ainda dizer com toda franqueza que não vale o raciocínio dos que querem que nossos irmãos separados comunguem da nossa Eucaristia, dizendo que nós já temos certa comunhão ou ainda que a Eucaristia ajuda a fazer a comunhão e a superar as divisões. Tudo isso é verdadeiro, mas não é argumentação válida para permitir a intercomunhão. João Paulo II adverte: “A celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, visando a sua consolidação e perfeição. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível, quer na dimensão visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação. Somente neste contexto, tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos” (Ecclesia de Eucharistia, 35).
Nos primeiros séculos de difusão do Cristianismo, dava-se a máxima importância ao fato de em cada cidade existir um só bispo e um só altar, como expressão da unidade do único Senhor. Cristo dá-Se na Eucaristia todo inteiro e em todo o lugar e, por isso, em toda a parte onde for celebrada, ela torna presente plenamente o mistério de Cristo e da Igreja como mistério de Comunhão com o Senhor e entre os irmãos, membros do mesmo corpo. De fato, Cristo, que forma em todo o lugar um único corpo com a Igreja, não pode ser recebido na discórdia. Precisamente porque Cristo é inseparado e inseparável dos seus membros, a Eucaristia só tem sentido se celebrada com toda a Igreja e num ambiente de caridade fraterna, de comum profissão da mesma fé católica, de participação ativa de todos e cada membro na vida da comunidade, de cuidado com os fracos e necessitados, de respeito para com os que caíram e estão sofrendo. São exigências da comunhão, exigências da Eucaristia!
Esta Sacramento deve encher os cristãos de saudades: saudade da comunhão íntima com o Senhor na vida de cada dia, saudade da comunhão com os irmãos na comunidade eucarística e com os irmãos que, por toda a terra, formam um só corpo, na comunhão do Corpo de Cristo, saudade dos irmãos que, por um motivo ou outro, não podem comungar eucaristicamente, saudade dos irmãos separados por não estarem conosco na profissão de fé integral, saudade, enfim, de que toda a humanidade possa, um dia, reconhecer a Cristo como Pão que alimenta nosso corpo e nossa alma, o seu Pai como nosso Deus e Pai, o seu Espírito como vida da nossa vida que nos reúne ao redor da mesma Mesa na qual toda a humanidade se reconheça como uma só família.

Corpus Christi - A Eucaristia como presença real de Cristo





O Catecismo da Igreja Católica afirma: “Cristo Jesus, aquele que morreu, ou melhor, ressuscitou, aquele que está à direita de Deus e que intercede por nós (Rm 8,34), está presente de múltiplas maneiras em sua Igreja: em sua Palavra, na oração de sua Igreja, lá onde dois ou três estão reunidos em meu nome (Mt 18,20), nos pobres, nos doentes, nos presos, em seus sacramentos, dos quais ele é o autor, no sacrifício da missa e na pessoa do ministro. Mas sobretudo está presente sob as espécies eucarísticas (n. 1373).
            É verdade que o Senhor Jesus, na força do seu Espírito, está presente de modos variadíssimos na sua Igreja, mas, sobretudo, de um modo eminente, ele se faz presente no pão e no vinho consagrados na Eucaristia. Ali, já não está presente simplesmente a graça do Cristo, mas, pessoalmente, o próprio Autor da graça! Ele, que na Última Ceia se entregou no pão e no vinho, dizendo “isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue”, é aquele mesmo que havia antes prevenido de modo solene: “Em verdade, em verdade, vos digo: ‘Aquele que crê tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida! A minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue é verdadeiramente uma bebida” (Jo 6,47s.55). Sendo assim, se em todos os sacramentos, Jesus Cristo atua através de sinais sensíveis que, sem mudarem de natureza, adquirem uma capacidade transitória de santificação, na Eucaristia, ele está presente com o seu corpo e sangue, alma e divindade, dando ao homem toda a sua pessoa e a sua vida, tudo quanto viveu entre nós amorosamente, até o extremo da entrega na cruz. Tudo isso está presente no pão e no vinho consagrados.
A Igreja sempre acreditou nesta maravilhosa realidade e insondável mistério da presença real do Senhor Jesus. Com a transformação ocorrida na consagração das espécies eucarísticas, o Senhor torna-se presente no seu Corpo e Sangue. Os Santos Padres, doutores da Igreja Antiga, para exprimir a mudança do pão e do vinho no Corpo e Sangue do Senhor, falavam de “metabolismo” do pão e do vinho em corpo e sangue. São Tomás de Aquino recordava que a Eucaristia é o sacramento da presença de Cristo. Isso a distingue dos outros sacramentos. O Santo Doutor dizia que ela “re-presenta” Cristo, no sentido de tornar Cristo realmente presente, já que a Eucaristia não é uma devota recordação, mas a presença efetiva, real, verdadeira e eficaz do Senhor morto e ressuscitado, que quer atingir todos os homens. E ele explicava ainda que o significado do Sacramento é tríplice: “O primeiro diz respeito ao passado, enquanto comemora a paixão do Senhor, que foi um verdadeiro sacrifício... Por isso, é chamado sacrifício. O segundo diz respeito ao efeito presente, ou seja, à unidade da Igreja, em que os homens são reunidos por meio deste Sacramento. O terceiro significado diz respeito ao futuro: pois este Sacramento é prefigurativo da bem-aventurança divina, que se realizará na pátria”. Também São Boaventura contribuiu para a teologia da Eucaristia, insistindo no espírito de piedade necessário para comungar Cristo. Recorda-nos ele que, na Eucaristia, além das palavras da Última Ceia, realiza-se a promessa do Senhor: “Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo” (Mt 28,20). Portanto, no Sacramento, Ele está real e verdadeiramente presente na Igreja.
Foi o Concílio de Trento que, como Magistério da Igreja, melhor exprimiu esta presença real do Senhor. O Concílio insistiu na presença verdadeira, real e substancial do Senhor Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, sob as espécies do pão e do vinho. Afirmou, do mesmo modo, que o Corpo do Senhor está presente não só no pão, mas também no vinho, e que o seu Sangue está presente não só no vinho, mas também no pão. Em outras palavras: Jesus não está parte no vinho e parte no pão, mas se encontra real e perfeitamente todo no vinho e todo no pão. Explicou também que, em ambas as espécies, o Senhor Jesus Cristo está presente com a sua alma humana e com a sua divindade. Portanto, Cristo, Verbo do Pai, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, está presente todo inteiro sob as duas espécies e em cada parte delas. O mesmo Concílio definiu ainda a “transubstanciação”, isto é a mudança real da substância do pão no Corpo de Cristo e da substância do vinho no seu divino Sangue. Na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, o Santo Padre recorda: A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, chama-se ‘real’, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem ‘reais’, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem. Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: ‘Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação’. Verdadeiramente a Eucaristia é mistério de fé, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceita pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. ‘Não hás de ver – exorta São Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé o assegura a ti, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa” (n. 15). Assim, segundo a fé católica, recebida dos apóstolos e conservada fielmente na Igreja de Cristo, a presença eucarística do Senhor Jesus morto e ressuscitado começa no momento da consagração e dura também enquanto subsistirem as espécies eucarísticas. Em outras palavras, enquanto houver o pão e o vinho consagrados, há realmente Corpo e Sangue do Senhor. O Papa João Paulo II, citando Paulo VI, afirmou claramente na sua Encíclica eucarística: “Permanece o limite apontado por Paulo VI: ‘Toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objetiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o Corpo e o Sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho’” (Ecclesia de Eucharistia, 15). Portanto, não basta afirmar que Cristo está no pão ou está no vinho; é necessário afirmar que Cristo é o pão e Cristo é o vinho e naquelas espécies consagradas nada há que não seja o Cristo Senhor, morto e ressuscitado. Imenso mistério! Mistério de amor! Mysterium fidei – mistério da fé!
Pode-se perguntar o motivo de o Senhor dar-se assim, tão realisticamente, no pão e no vinho. Apontemos algumas razões: (1) A nossa união real e íntima com ele que, na comunhão, não somente está conosco, mas também em nós, fazendo com que nós estejamos nele. (2) A edificação da Igreja, já que comungando todos do mesmo Corpo e Sangue do Senhor, tornamo-nos nele cada vez mais um só corpo, que é a Igreja, segundo a palavra do Apóstolo: “O cálice de bênção que abençoamos não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que participamos deste único pão” (1Cor 10,16). Esta unidade não é simplesmente simbólica ou sentimental, mas real, pois é unidade no Corpo do Senhor, pleno do Espírito Santo. (3) A nossa divinização, pois, recebendo o Corpo e Sangue do Senhor, recebemos a própria vida divina, alimentando-nos com o próprio Cristo ressuscitado pleno do Espírito Santo que dá vida: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que come de mim viverá por mim” (Jo 6,56s). (4) Finalmente, comungando do corpo e sangue daquele que morreu e ressuscitou, recebemos como alimento a própria vida eterna, vida de ressurreição: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Quem come deste pão viverá eternamente” (Jo 6,54.58c).
Diante de tal dom, nossa resposta é não somente a fé agradecida, mas também a viva sede da comunhão freqüente e da adoração piedosa. São João Crisóstomo afirmava: “Quando estás para abeirar-te da sagrada mesa, acredita que nela está presente o Senhor de todos”. Por isso, a adoração é inseparável da comunhão. Neste sentido, a Igreja desde tempos remotos, recomenda aos seus filhos que se detenham freqüentemente em adoração ao Senhor sacramentado. O Papa quis renovar essa recomendação: O culto prestado à Eucaristia fora da missa é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho – resulta da celebração da Eucaristia e destina-se à comunhão, sacramental e espiritual. Compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas. É bom demorar-se com ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo predileto (cf. Jo 13,25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se atualmente o cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela arte da oração, como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força, consolação, apoio! Desta prática, muitas vezes louvada e recomendada pelo Magistério, deram-nos o exemplo numerosos Santos. De modo particular, distinguiu-se nisto Santo Afonso Maria de Ligório, que escrevia: ‘A devoção de adorar Jesus sacramentado é, depois dos sacramentos, a primeira de todas as devoções, a mais agradável a Deus e a mais útil para nós’. A Eucaristia é um tesouro inestimável: não só a sua celebração, mas também o permanecer diante dela fora da missa permite-nos beber na própria fonte da graça. Uma comunidade cristã que queira contemplar melhor o rosto de Cristo... não pode deixar de desenvolver também este aspecto do culto eucarístico, no qual perduram e se multiplicam os frutos da comunhão do corpo e sangue do Senhor” (Ecclesia de Eucharistia, 15).
Portanto, não tenhamos dúvidas: se as espécies eucarísticas destinam-se primeiramente a serem consumidas em comunhão fraterna durante a celebração da Santa Missa, também podem e devem ser adoradas não somente no momento mesmo da consagração – quando devemos todos nos ajoelhar de modo reverente a adorante -, mas também fora da missa, em adoração pessoal ou comunitária. Estas são as constantes consciência e doutrina da Igreja, da qual nenhum católico deve duvidar.

Corpus Christi - A Eucaristia como banquete escatológico


Se é certo que a Eucaristia é verdadeiramente o sacrifício de Cristo, não o é menos que tal sacrifício foi entregue à Igreja sob a forma de um banquete: “A missa é ao mesmo tempo e inseparavelmente o memorial sacrifical no qual se perpetua o sacrifício da cruz, e o banquete sagrado da comunhão no Corpo e no Sangue do Senhor. Mas a celebração do sacrifício eucarístico está toda orientada para a união íntima dos fiéis com Cristo pela comunhão. Comungar é receber o próprio Cristo que se ofereceu por nós” (Catecismo, 1382). Assim, a Eucaristia é também banquete: o Altar do sacrifício é também a Mesa sagrada da refeição e da comunhão com o Senhor e os irmãos! Diz o Santo Padre João Paulo: A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: ‘Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós’ (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas ‘a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida’ (Jo 6, 55)” (Ecclesia de Eucharistia, 16). Por isso mesmo, dá-se também à Eucaristia o nome de Ceia do Senhor (cf. 1Cor 11,20), já que este sacramento é a celebração daquela Ceia que Jesus comeu com os seus discípulos na véspera da Páscoa. Tal Ceia era já a celebração ritual, em gestos, palavras e símbolos, daquilo que Jesus iria realizar no dia seguinte: ele se entregaria totalmente na cruz, dando-nos seu Corpo e seu Sangue: “Comei: isto é o meu corpo que será entregue na cruz! Bebei: isto é o meu sangue que será derramado por vossa causa!” Esta Ceia sagrada, chamada Última Ceia, já antecipava misteriosamente a Ceia das núpcias do Cordeiro, núpcias de Cristo ressuscitado com sua Esposa, a Igreja, na Jerusalém celeste: “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes de sofrer; pois eu vos digo que já não mais a comerei até que ela se cumpra no Reino de Deus” (Lc 22,15-16). O Apocalipse, fazendo eco às palavras do Senhor, proclama: “Felizes aqueles que foram convidados para o banquete das núpcias do Cordeiro” (19,9). Participar da Ceia do Senhor é não somente participar da Ceia que Jesus celebrou como memorial de sua paixão, morte e ressurreição, mas também já antecipar e saborear, na força do Espírito Santo, a Ceia do Banquete celeste, quando o próprio Esposo, Jesus, será o alimento eterno para sua Esposa. Em outras palavras: é uma ceia que começa na terra e durará no céu, por toda a eternidade! Assim canta a liturgia: “Ó sagrado Banquete, em que de Cristo nos alimentamos. Celebra-se o memorial de sua Paixão, o espírito é repleto de graça e se nos dá o penhor da glória”. Neste mesmo sentido, o Papa João Paulo afirma: A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho” (Ecclesia de Eucharistia, 19.)
No Antigo Testamento, além dos holocaustos (figuras do sacrifício que Cristo ofereceu e se torna presente em cada Eucaristia), conhecia-se também os sacrifícios de comunhão: neles se oferecia uma parte da vítima no altar e a outra parte era consumida num banquete pelos fiéis na presença do Senhor, significando que o Senhor e o fiel comiam da mesma comida, de modo que o homem comia à mesa de Deus, a criatura participava da vida do Criador, pois, para os orientais, comer à mesma mesa significa participar da mesma vida, da mesma sorte, significa ser amigos (cf. Lv 7,11-21; 22,29-30). Tudo isto era preparação para a comunhão que o Senhor queria estabelecer conosco, uma comunhão inimaginável, estupenda: ele próprio daria seu Filho, morto e ressuscitado, pleno do Espírito Santo, como nosso alimento, como vida de nossa vida! Então, participar do banquete eucarístico é participar da Vida que o próprio Deus entregou ao seu Filho ao ressuscitá-lo dos mortos: “Deus nos deu a Vida eterna e esta Vida está em seu Filho! Quem tem o Filho, tem a Vida” (1Jo 5,11). É por isso que Jesus disse claramente: “Em verdade em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6,53). Eis, que mistério tão grande e tão santo: participar do Pão e do Vinho eucarísticos é entrar em comunhão de Vida com Aquele que é Morto e Ressuscitado, com o Cordeiro eternamente imolado por nós! Participar das Espécies eucarísticas, das Coisas santas, é receber a própria Vida, aquela que Jesus recebeu na sua ressurreição, aquela Vida que estava junto do Pai e que nos apareceu (cf. 1Jo 1,2). Cada participação na Eucaristia é uma transfusão de vida eterna que recebemos, até que a consumemos na Glória!
Comungar no Corpo e no Sangue do Senhor, Cabeça da Igreja, é também entrar em comunhão com os irmãos que formam a Igreja. Nós somos “con-corpóreos” e “con-sangüíneos” uns dos outros porque todos temos um só corpo (o Corpo de Cristo) e temos um só sangue (o Sangue de Cristo). Somos irmãos carnais, irmãos de sangue, irmãos eucarísticos: “O cálice de bênção que abençoamos não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que todos participamos desse único pão” (1Cor 10,16s). No Banquete eucarístico acontece a comunhão entre nós e Cristo e, por ele, a comunhão entre nós, no único Espírito Santo de Cristo ressuscitado. Santo Agostinho afirmava: “Se sois o corpo e os membros de Cristo, é o vosso sacramento que é colocado sobre a mesa do Senhor; recebeis o vosso sacramento. Respondeis ‘Amém’ àquilo que recebeis, e confirmais ao responder. Ouvis esta palavra: ‘O Corpo de Cristo’, e respondeis: ‘Amém’. Sede, pois, um membro de Cristo, para que o vosso Amém seja verdadeiro”. Assim, o Pão e o Vinho eucarísticos, que foram cristificados pela ação do Espírito do Ressuscitado, edificam a Igreja: neste santo Banquete nos tornamos sempre mais Corpo do Senhor, Igreja do Senhor: “Olhai com bondade a oferenda da vossa Igreja, reconhecei o sacrifício que nos reconcilia convosco e concedei que, alimentando-nos com o Corpo e Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito” (Oração Eucarística III). Ora, é o Espírito do Cristo morto e ressuscitado recebido em comunhão, que nos faz ser um só corpo e um só espírito, que é a Igreja. Assim se exprimia Santo Efrém: “(Cristo) chamou o pão seu Corpo vivo, encheu-o de si próprio e do seu Espírito. E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De fato, é verdadeiramente o meu Corpo, e quem o come viverá eternamente”. Por tudo isso, a participação no Banquete eucarístico nos compromete profundamente com a vida da Igreja, de modo que quem não quer viver como Igreja-comunidade não pode participar da Eucaristia, que é “sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade”, mais forte que todo pecado, todo isolamento e toda divisão.
Além do mais, a participação e comunhão nas mesmas espécies eucarísticas, Corpo e Sangue do Senhor, compromete-nos, na caridade de Cristo, com os irmãos carentes e sofredores, sobretudo com os pobres. São João Crisóstomo ensinava assim: “Degustaste o Sangue do Senhor e não reconheces sequer o teu irmão. Desonras esta própria Mesa, não julgando digno de compartilhar do teu alimento aquele que foi julgado digno de participar desta Mesa. Deus te libertou de todos os teus pecados e te convidou para esta Mesa. E tu, nem mesmo assim, te tornaste mais misericordioso”.
Por tudo isso, é absolutamente incompreensível que alguém participe da Missa sem comungar! O sacrifício eucarístico tende para esta comunhão entre nós e o Cristo, que se consuma quando comungamos! Somente por razões gravíssimas devemos nos abster da comunhão. Caso contrário, temos a obrigação de amor e de sede de vida de procurar o sacramento da Penitência e nos reconciliar com Cristo e a Igreja, de modo a participar plenamente do Banquete eucarístico! Certamente, há casos em que o mais aconselhável é não receber a comunhão... Mas aí não é por desleixo ou descaso, mas por coerência e coragem de quem é maduro para assumir que está em alguma situação particularmente problemática em relação ao Evangelho. É o caso, por exemplo, dos que estão unidos em segunda união já sendo casados sacramentalmente e o primeiro cônjuge ainda esteja vivo. Nesses casos, o Senhor também vem a esses irmãos e para eles, pois conhece a sua história e vê o seu coração. É preciso recordar que, se a Igreja está ligada aos sacramentos, o Senhor não está: ele é o Senhor dos sacramentos e pode vir com sua graça de modo desconhecido e inesperado para nós. É bom recordar também que aqui não se trata de julgar os outros ou dizer que alguém não é digno de comungar! Quem de nós é digno? Quem ousaria pensar-se digno do Senhor? A Igreja, ao invés, nos ensina a dizer, antes de cada comunhão: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada!” A regra, no entanto, é clara: o quanto possível, comungar sempre, em cada Eucaristia da qual participarmos!
Terminemos com as palavras da Liturgia de São João Crisóstomo: “Ó Filho de Deus, faz-me hoje participante do teu místico Banquete. Não entregarei o teu Mistério aos teus inimigos nem te darei o beijo de Judas. Mas, como o ladrão, eu te digo: Recorda-te de mim, Senhor, quando estiveres no teu Reino!”

Corpus Christi - A Eucaristia como sacrifício


Assim diz o Catecismo da Igreja: “Quando a Igreja celebra a Eucaristia, rememora a Páscoa de Cristo, e esta se torna presente: o sacrifício que Cristo ofereceu uma vez por todas na cruz torna-se sempre atual: Todas as vezes que se celebra no altar o sacrifício da cruz, pelo qual Cristo nossa Páscoa foi imolado, efetua-se a obra da nossa redenção. Por ser memorial da páscoa de Cristo, a Eucaristia é também um sacrifício. O caráter sacrifical a Eucaristia é manifestado nas próprias palavras da instituição: ‘Isto é o meu Corpo que será entregue por vós’, e ‘Este cálice é a nova aliança em meu Sangue, que vai ser derramado por vós’ (Lc 22,19s). Na eucaristia, Cristo dá este mesmo corpo que entregou por nós na cruz, o próprio sangue que ‘derramou por muitos para remissão dos pecados’ (Mt 26,28)” (Catecismo da Igreja Católica, 1365). A Celebração Eucarística é, portanto, memorial, isto é, o tornar-se presente, no aqui e no agora da vida da Igreja e da vida de cada um de nós, daquele único e irrepetível sacrifício que Jesus ofereceu na cruz. “O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício: ‘É uma só e mesma vítima, é o mesmo que oferece agora pelo ministério dos sacerdotes, que se ofereceu a si mesmo então na cruz. Apenas a maneira de oferecer difere” (Catecismo, 1367).
Assim, a Eucaristia torna presente, “presentifica”, o único e irrepetível sacrifício do Cristo salvador; sacrifício que o Senhor Jesus deu à sua Igreja para que ela o ofereça até que ele venha em sua Glória. Por isso mesmo, é chamado de sacrifício de louvor, sacrifício espiritual (porque oferecido na força do Espírito Santo), sacrifício puro e santo (porque sacrifício do próprio Cristo Jesus). Este santo sacrifício da Missa leva à plenitude todos os sacrifícios de todas as religiões e, particularmente, aqueles do Antigo Testamento. Podemos até recordar as palavras da profecia de Malaquias, na qual Deus prometia a Israel um sacrifício perfeito ao seu nome: “Sim, do levantar do sol ao seu poente o meu nome será grande entre as nações, e em todo lugar será oferecido ao meu nome um sacrifício de incenso e uma oferenda pura” (1,11). Cristo, com seu sacrifício único e irrepetível, que entregou à sua Igreja para celebrá-lo até que ele venha, ofereceu este sacrifício, cumprindo a profecia.
Mas, quando a Igreja fala em sacrifício de Cristo, ela não pensa simplesmente no que aconteceu no Calvário. Toda a existência humana de Jesus teve um caráter sacrifical. O Autor da Carta aos Hebreus, falando do Cristo o momento de sua Encarnação, afirma: “Ao entrar no mundo, ele afirmou: ‘Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, - no rolo do livro está escrito a meu respeito – eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,5). Jesus viveu a toda sua vida entre nós, desde o primeiro momento, no amor, no abandono, na obediência, como uma oferta sacrifical ao Pai para nossa salvação. Toda esta existência sacrifical e sacerdotal chegou ao máximo no sacrifício da cruz. Ali, naquele acontecimento tremendo, verificou-se a palavra da Escritura: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo” (Jo 13,1). Assim sendo, quando celebramos a Eucaristia, é toda esta vida sacrifical, esta vida doada aos irmãos por amor ao Pai, que se torna presente sobre o altar para a nossa salvação. Mais ainda: como esta entrega, consumou-se com a resposta do Pai ao seu Filho, ressuscitando-o dentre os mortos, a Eucaristia é o próprio mistério pascal: no altar, torna-se misteriosamente presente a existência humana de Jesus inteira: seus dias entre nós, sua paixão, morte, sepultura, sua ressurreição e ascensão e até mesmo a certeza da sua vinda gloriosa: “Celebrando, agora, ó Pai, a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo e sua descida entre os mortos, proclamamos a sua ressurreição e ascensão à vossa direita, e, esperando a sua vinda gloriosa, nós vos oferecemos o seu Corpo e Sangue, sacrifício do vosso agrado e salvação do mundo inteiro” (Oração eucarística IV).
Porque é o sacrifício do próprio Cristo, Filho de Deus feito homem, numa total obediência amorosa ao Pai por nós, a Eucaristia é aquele sacrifício perfeito de que falava a profecia de Malaquias 1,11. É o que afirma a própria liturgia : “Por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, e pela força do Espírito Santo, dais vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o vosso povo, para que vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr-do-sol, um sacrifício perfeito” (Oração Eucarística III). A Igreja oferece, pois, este santíssimo sacrifício, de eficácia e valor infinitos, pelos vivos e pelos mortos, por crentes e descrentes e até mesmo por toda a criação: “E agora, ó Pai, lembrai-vos de todos pelos quais vos oferecemos este sacrifício: o vosso servo, o Papa, o nosso Bispo, os bispos do mundo inteiro, os presbíteros e todos os ministros, os fiéis que, em torno deste altar, vos oferecem este sacrifício, o povo que vos pertence e todos aqueles que vos procuram de coração sincero” (Oração Eucarística IV). Neste sacrifício perfeito e infinito, a Igreja louva, agradece, suplica, pede perdão, adora e intercede por si e pelo mundo inteiro, tudo isto unida ao próprio Cristo, seu Cabeça e Esposo. Por isso, nenhuma outra celebração se iguala ao sacrifício eucarístico em força, santidade e eficácia.
Celebrar este sacrifício santo nos compromete profundamente, seja pessoalmente seja como Igreja: “O cálice de bênção que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo?” (1Cor 10,16). Segundo estas palavras de São Paulo, participar da Eucaristia é participar da vida sacrifical de Jesus, é estar dispostos a fazer de nossa vida uma participação no seu sacrifício, completando em nossa existência o mistério da cruz do Senhor (cf. Cl 1,24). Em cada Eucaristia, com Jesus, oferecemos ao Pai a nossa própria vida. Eis como nossa participação no sacrifício eucarístico nos compromete profundamente. Não poderia participar desse Altar quem não estar disposto a se oferecer cada dia com Cristo e como Cristo: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus; este é o vosso culto espiritual. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12,1-2).
Pode-se perguntar de que modo um acontecimento ocorrido há dois mil anos pode se tornar presente sobre o Altar. É importante compreender o que significa o “memorial”. Não significa simplesmente recordação ou memória. Nas Escrituras, memorial é dito zikaron e significa tornar presente, por gestos, símbolos e palavras, um fato acontecido no passado uma vez por todas. Uma vez ao ano, os judeus celebravam e celebram ainda hoje a Páscoa, memorial da saída do Egito. Nessa celebração, ele não somente recordam a passagem da escravidão para a liberdade, mas tinham e têm a consciência que, participando da celebração, participam realmente da própria libertação que Deus operara. Tanto isso é verdade que, ainda hoje, aquele que preside à celebração, diz assim: “Em toda geração, cada um deve considerar-se como se tivesse pessoalmente saído do Egito, como está escrito: ‘Explicarás então a teu filho: isto é em memória do que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito’. Portanto, é nosso dever agradecer, honrar e louvar, glorificar, celebrar, enaltecer, consagrar, exaltar e adorar a quem realizou todos esses milagres por nossos pais e para nós mesmos. Ele nos conduziu da escravidão à liberdade, do sofrimento à alegria, da desolação a dias festivos, da escuridão a uma grande claridade e do cativeiro à redenção”. E, depois, acrescenta: “Bendito sejas tu, Adonai, nosso Deus, rei do universo, que nos redimiste, libertaste nossos pais do Egito, e nos permitiste viver esta noite para participar do Cordeiro, do pão ázimo e das ervas amargas”. Ora, é exatamente isso que a Eucaristia é: memorial da Páscoa do Senhor Jesus. Quando nós a celebramos, torna-se presente no nosso hoje, na nossa vida, na nossa situação, tudo quanto Jesus fez por nós, que alcança seu cume na sua morte e ressurreição. Deste modo, a Páscoa do Senhor está sempre presente e atuante na nossa vida e, através de Jesus e com Jesus, podemos dizer ao Pai como os judeus dizem: “é nosso dever agradecer, honrar e louvar, glorificar, celebrar, enaltecer, consagrar, exaltar e adorar a ti, Adonai, Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo!” Então, em cada missa torna-se presente, atuante, o único sacrifício pascal do Senhor, memorial de sua encarnação, de sua vida humana, de sua paixão, morte e ressurreição, de sua ascensão ao Pai e do dom do Espírito que ele nos fez! Resta apenas recordar que tudo isso acontece na força do Espírito Santo, aquele mesmo Espírito eterno no qual Jesus ofereceu-se ao Pai como vítima sem mancha (cf. Hb 9,14). É este Espírito Santo que, transfigurando o pão e o vinho, torna presente sobre o Altar o Cristo morto e ressuscitado, glorioso, mas trazendo eternamente as chagas da paixão, numa oferta eterna, que jamais passará. Diz a Encíclica sobre a Eucaristia: A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto atual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade de todos os tempos. Com efeito, o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício. Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: ‘Nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá’. A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial, a « exposição memorial de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se atualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrifical do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indireta ao sacrifício do Calvário” (Ecclesia de Eucharistia, 12).
Concluamos com as palavras do Santo Padre: Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e realiza-se também a obra da nossa redenção. Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do gênero humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes. Assim, cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável. É esta verdade que desejo recordar mais uma vez, colocando-me convosco, meus queridos irmãos e irmãs, em adoração diante deste Mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. Que mais poderia Jesus ter feito por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor levado até ao “extremo” (cf. Jo 13,1), um amor sem medida” (Ecclesia de Eucharistia, 11).

Corpus Christi - A Eucaristia, comunhão com o Senhor

  +  PAX

Postarei alguns textos de Dom Henrique Soares da Costa, bispo auxiliar de Aracaju, para auxiliar nossa reflexão nessa Solenidade.
Espero que seja proveitosa!

Fiquem com Deus, sob as bênçãos de NP São Bento!



Ao cair desta tarde, com a oração das primeiras vésperas, a Mãe Igreja iniciou a celebração da Solenidade de Corpus Christi, festa da Eucaristia, proclamação da presença real do Cristo morto e ressuscitado no pão e no vinho consagrados. Tendo em mente o mistério eucarístico, São Paulo pergunta: “O cálice de bênção que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo?” (1Cor 10,16) Tais afirmações, em forma de perguntas e, à primeira vista, tão simples, têm uma força e significação enormes.
Na Escritura Sagrada, o “sangue” não é simplesmente uma realidade material, o líquido vermelho que circula em nossas artérias, mas sobretudo a vida e, muitas vezes, a vida tirada violentamente. Dar o sangue quer dizer dar a vida, vida sofrida, violentada, arrancada de modo cruel. “Sangue de Cristo” significa, portanto, a vida de Jesus dada em sacrifício, tirada de modo violento; a vida que ele deu por nós. “Corpo”, por sua vez, não significa primeiramente os músculos humanos, mas sim o homem todo, a pessoa toda, na sua situação de criatura limitada, frágil, mortal. Assim, “corpo de Cristo” exprime a natureza humana que o Filho de Deus assumiu por nós de Maria, a Virgem: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14), quer, então, dizer, fez-se homem, fez-se realmente humano, com um corpo humano e uma alma humana, com inteligência, vontade, consciência, afeto, sentimentos e liberdade humanos. Então, dar o corpo significa dar-se todo, dar toda sua vida humana: seus sonhos, cansaços, desilusões, sofrimentos... Dar tudo quanto a pessoa é! Foi assim que Jesus se nos deu: em todo o seu ser, sem reservas; doou-nos sua vida e sua morte!
Pois bem, o Apóstolo afirma que o pão que partimos é comunhão com o corpo do Senhor. Palavra estupenda! Comungar na eucaristia significa entrar numa comunhão misteriosa e real com a pessoa mesma de Jesus; mas não uma pessoa desencarnada: é entrar em comunhão com tudo quanto ele viveu, experimentou em sua existência humana; é ter comunhão com os ideais de Jesus, com o modo de viver e agir de Jesus, com as opções, esperanças e angústias de Jesus, com o sofrimento de Jesus, com a morte e sepultura de Jesus, com a ressurreição e glorificação de Jesus! Comungar daquele pão é comungar com Jesus na totalidade da sua existência, é colocá-lo na nossa existência, não mais viver por nós mesmos, sozinhos conosco, do nosso modo, mas viver nossa vida na vida de Jesus, que por nós morreu e ressuscitou (cf. 2Cor 5,15)!
E o cálice, São Paulo diz que é comunhão no sangue de Cristo; quer dizer comunhão na sua entrega, na sua morte, morrida por nós! Participar do cálice do Senhor é estar dispostos a beber o cálice com ele, a ser batizados no batismo de morte no qual ele foi batizado (cf. Mc 10,38)! Portanto, participar do pão e do vinho eucarísticos é entrar em comunhão de vida e morte com o Senhor, é “com-viver” com Cristo, é conhecê-lo, conhecer o poder de sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, “com-formando-nos” com ele na sua morte para alcançar a sua ressurreição dentre os mortos (cf. Fl 3,10).
Esta é a experiência central da vida cristã: viver nesta comunhão plena de vida e morte com o Senhor! E aqui, precisamente, cabe alguns urgentes questionamentos... Os cristãos têm consciência disso? Individualmente e como Igreja, temos presente esta nossa misteriosa e estupenda vocação, que é trazer em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo (cf. Fl 4,10). Como os cristãos se comportam diante dos desafios da vida pessoal e comunitária? Estão os cristãos dispostos a viver para o Senhor ou somente para si mesmos, segundo a lógica do mundo contemporâneo? Nossa evangelização tem levado a esta comunhão existencial com o Cristo no mistério da sua vida, morte e ressurreição? Notemos que o que está em jogo aqui é a própria identidade do cristianismo! Sem esta consciência não há, de fato, uma vida cristã! Ser cristão não é primeiramente aderir a doutrinas ou a uma moral mas, antes de tudo, entrar em comunhão com Alguém, com o Senhor Jesus.
Pode-se, então, compreender aquelas palavras de fogo do santo bispo de Antioquia, Inácio, que no século I, ao dirigir-se para o martírio, no qual seria devorado pelas feras, exclamava: “Coisa alguma visível ou invisível me impeça de encontrar Jesus Cristo. Maravilhoso é para mim morrer por Jesus Cristo. A ele é que procuro, ele que morreu por nós; quero aquele que ressuscitou por nossa causa. Permiti que eu seja imitador do sofrimento do meu Deus! Meu amor está crucificado! Quero o pão de Deus que é a carne de Jesus Cristo, da descendência de Davi, e como bebida quero o sangue dele, que é amor incorruptível. Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. Quando lá chegar serei homem!” Palavras estonteantes! Inácio de Antioquia compreendera o que significava celebrar a eucaristia, participar do corpo e sangue do Senhor!
Que nossas eucaristias sejam realmente a celebração sacramental desta comunhão de vida, sonho, agir, morte e ressurreição com o Cristo, cujo Corpo e Sangue comungamos. É disto que o mundo tanto precisa; é isto que o mundo espera, mesmo sem o saber: o nosso testemunho de comunhão com o Salvador! Só assim tem realmente sentido proclamar nossa fé na presença real do Senhor no pão e no vinho eucarísticos.