Em nossa reunião deste mês de março, 3º domingo da Quaresma, dia 20, reunimo-nos novamente sob a presidência de Ir. Maria de Fátima que em continuação ao assunto que será abordado durante todo esse ano, ou seja, o Ofício Divino, ela apresentou-nos um pequeno resumo de como chegamos até a estrutura do ofício da maneira como o temos hoje e em seguida procuramos nos deter um pouco mais nos capítulos 8 e 9 da Santa Regra onde nosso patriarca inicia a descrição desse “ofício” que é parte primordial na vida dos monges e monjas. Relatou-nos Ir. Fátima que, São Bento, escreveu um único livro: A Santa Regra. Porém, dentro dela temos um “código litúrgico”, ou seja, uma descrição detalhada de como rezar os salmos ao longo de todo o ano e, dentro do ano, em cada época específica ou ainda, em cada dia ao longo de toda a semana. (cf. Capítulos 8 e 9 RB e ss.).
Hoje, admite-se que Bento de Núrsia utilizou uma regra anônima ligeiramente anterior, a Regula Magistri (ou "Regra do Mestre"), cuja redação se deve situar entre 500 e 530.Tinha em si muitas exigências dentre as quais que se rezassem aproximadamente 300 salmos no verão, 320 no inverno; salmos específicos nas solenidades que tinham vigílias que se arrastavam por toda a noite, etc. Era um regra ‘exigente’ demais talvez, pois não se preocupava com o “ser humano” do monge ou com seu cansaço e fadiga física; São Bento ao criar o seu “código litúrgico” preocupa-se com isso de maneira especial como veremos logo adiante; num segundo momento, depois de observar a ‘regra do mestre’, São Bento também observou Santo Agostinho. Viu que, ao invés de somente recitar os salmos ele preocupava-se com a melodia e com a forma de cantar os mesmos; eles eram intercalados com leituras das Sagradas Escrituras. Esse modo de agir muito agradou o Santo Legislador. Foi obra de Santo Agostinho a também introduzir a oração de completas no ofício divino para ‘completar’ o ciclo de orações que eram recitadas ao longo de todo o dia; pelo seu esforço também temos salmos fixos para a oração de “laudes”. Outro que muito agradou a São Bento no trato litúrgico foi Cassiano. Além dele São Bento também observou que os antigos monges do Egito, da Mesopotâmia e da Palestina costumavam-se prostrar por terra entre um salmo e outro; os salmos mais longos eram divididos e mesclavam-se entre eles leituras do Antigo e Novo Testamentos. Temos aqui, mais algumas coisas que agradaram nosso venerável fundador. Ao que parece-nos foram dos antigos monges dessas regiões que herdamos a invocação inicial de nossos ofícios: “Deus vem em meu auxílio...”; São Bento também observou que no Egito os monges não usavam música para o ofício. Em contrapartida na Palestina e Mesopotâmia eles seguiam as horas canônicas e dividiam os noturnos. Também utilizavam se das invocações de “Kyrie Eleison”.
O que podemos ver até aqui é que São Bento mostra-se um homem observador. Olha ao seu redor, aqui e ali e tira o que acha de melhor. Foi assim que ele observando Cesário de Arles que escreveu a “Regra das Virgens” e entre outras coisas também viu que em seu ofício tinha-se uma divisão especial dos noturnos, principalmente aos domingos; intercalava leituras breves com leituras longas, usava os responsórios e baseava-se muito nos ofícios das Catedrais de Roma e com isso mostrava sua união ao Magistério da Santa Igreja. Em Cesário também observamos a utilização do “Benedictus”, a recitação do Pai-Nosso em Laudes e Vésperas e a prática antiga dos “Lucernários” (devidamente acender as luzes ao anoitecer. É cantado o "Fos ilaron” (luz da alegria), dirigida a Cristo, à luz dos gentios).
Concluímos com isto que, a unificação de todos estes autores realizada de forma magistral por São Bento dá-se o nome de “código litúrgico” que está presente dentro da Santa Regra por ele escrita. Ele observou todas as antigas tradições, inclusive a da Santa Igreja, escolheu aquilo que julgou bom e tomou para si. Porém, vocês podem estar se perguntando como é que, São Bento, sendo um monge de clausura, conseguira reunir e saber de todas estas coisas e sobre tantos autores e pessoas diversas sem ausentar-se de sua cela em seu mosteiro. Oras! Em Monte Cassino, São Bento era visitado por muitos: sábios, doutores, entendidos. Era amigo de muitos bispos e autoridades. Muitos acorriam a ele. Narra-se que a hospedaria de seu mosteiro estava sempre repleta de peregrinos e visitantes que vinham aconselhar-se e lhe traziam informações do mundo exterior. Graças a este conjunto de fatos reunidos preocupou-se em fazer um ofício que não fosse pesado aos monges e que durante a oração se alcançasse a intimidade com Cristo. Sobre a base sólida dos padres de Roma constituiu o seu ofício. Ao lermos os capítulos 8 e 9 da Santa Regra vemos, por exemplo, que São Bento sugere que no inverno sejam reduzidas as leituras e a divisão dos salmos se a comunidade for muito pequena. Salienta também que os monges devem ter tempo para suas “necessidades naturais”. Grande homem, Bento está preocupado com o “ser humano” em primeiro lugar, criatura amada de Deus, criada à sua imagem e semelhança. Ao mudar-se o foco, percebe-se que a regra de vida proposta por São Bento poder-se-á ser considerada “moderna demais” para os moldes e ditames do século VI, mas nas entrelinhas percebemos algo que vai muito além do trato com a vida espiritual. São Bento quer que observemos o monge em sua plenitude: espírito, alma e corpo, unidos no pleno louvor ao Criador.
Para seguirmos adiante, observemos mais atentamente o que dizem os Capítulos 8 e 9 da Santa Regra:
CAPÍTULO 8 - Dos Ofícios Divinos durante a noite
[1] Em tempo de inverno, isto é, de primeiro de novembro até a Páscoa, em consideração ao que é razoável, devem os monges levantar-se à oitava hora da noite [2] de modo que durmam um pouco mais da metade da noite e se levantem tendo já feita a digestão. [3] O tempo que resta depois das Vigílias seja empregado na preparação de algum trecho do saltério ou das lições, por parte dos irmãos que disto necessitarem. [4] Da Páscoa, porém, até o referido dia primeiro de novembro, seja regulada a hora de tal maneira que as Matinas que devem ser celebradas quando começa a clarear, venham em seguida ao ofício das Vigílias, depois de brevíssimo intervalo, durante o qual os irmãos saem para as necessidades naturais.
Os ofícios da “noite” resumem-se basicamente nas “Vigílias” e nas “Laudes” recitadas ao nascer do novo dia. Ao pensarmos nestes dois “pilares” da oração noturna dos monges pode vir a nossa mente a “Lectio Divina” que no caso dos primeiros monges se estruturava aproximadamente da seguinte forma:
a. Leitura de um trecho das Sagradas Escrituras
b. Meditação, ou seja, leitura ponto a ponto do texto das Sagradas Escrituras examinando e absorvendo esta palavra;
c. Oração, ou seja, orar a Deus a partir daquele texto e partir imediatamente para o próximo ponto;
d. Ação. Aqui não se fala em “contemplação”. Os primeiros monges consideravam de grande importância o “agir” logo depois de “orar”; sair de si e partir para o encontro do próximo.
O ato de “meditação” aqui deve ser entendido como “aprender de memória”, “decorar” para entender. Ao lermos o versículo primeiro do capítulo 8 vemos que os monges devem levantar-se durante todo o inverno às duas horas da manhã para a oração, muito diferente dos monges antigos que, muitas vezes, passavam a noite toda tentando realizar uma boa oração. Com isso São Bento nos mostra que não quer o exagero. Em sua época, os monges em geral realizavam todas as suas atividades ao longo de todo o dia e tomavam uma única refeição pelo horário de “vésperas”, (em nosso horário por volta das 18h00, talvez); rezavam em comunidade e iam dormir; São Bento deseja que seus discípulos durmam ao menos a metade da noite e que, feita a digestão, possam acordar e reunir-se novamente para a oração comunitária (versículos 1 e 2). Observamos aqui que tudo gira em torno e em relação direta com a oração, fim primeiro da vida monástica proposta por nosso Santo Legislador; no versículo 2 do dito capítulo 8 ainda lemos “ao que se é razoável” fazer tudo isso, uma vez que os monges não tinham relógio e tinham que literalmente “calcular” e se orientar pelos astros o curso da noite de modo que, o responsável pelo “sino” pudesse alertar os co-irmãos a respeito da hora e momento corretos para que pudessem acorrer ao coro. Indo-se um pouco mais adiante na estrutura de seu “código litúrgico” poderemos observar que São Bento irá preocupar-se até mesmo com aqueles que chegarem atrasados ao ofício, razão pela qual ele pedirá que alguns salmos sejam recitados “um pouco mais pausadamente”, afim de que todos se acheguem a seus devidos lugares.
Nesta breve análise do Capitulo 8 e 9, não podemos deixar de perceber que São Bento coloca ao centro de todo o “código litúrgico” por ele proposto a Páscoa de Nosso Senhor. Observem que lemos: “do tempo do inverno à Páscoa... e da Páscoa até o inverno...”. Páscoa é a ressurreição de Cristo, ela é a passagem para a vitória de Jesus sobre a morte. É nossa vitória também. Ao celebrarmos as “matinas” percebemos claramente este verdade de fé. Elas são celebradas ao clarear do novo dia; o sol que se levanta no horizonte anunciando um novo dia é símbolo da ressurreição de Cristo que se levanta do túmulo e nos mostra sua vitória sobre as trevas da morte. Essa vitória é amplamente celebrada nas “Laudes”, uma vez que o pleno louvor a Deus é dado a cada dia de nossas vidas e em comunhão com toda a Igreja esse mesmo louvor é celebrado anualmente durante todo o Tríduo Pascal.
Leiamos, agora, mais atentamente o Capítulo 9 da RB:
CAPÍTULO 9 - Quantos salmos devem ser ditos nas Horas noturnas
[1] No tempo de inverno acima citado, diga-se em primeiro lugar o versículo, repetido três vezes: "Senhor, abrireis os meus lábios e minha boca anunciará vosso louvor", [2] ao qual deve ser acrescentado o salmo terceiro e o "Glória". [3] Depois desse, o salmo nonagésimo quarto, com antífona, ou então cantado. [4] Segue-se o Ambrosiano e depois seis salmos com antífonas. [5] Recitados esses e dito o versículo, o Abade dê a bênção; depois, achando-se todos sentados nos bancos sejam lidas pelos irmãos, um de cada vez, três lições do livro que está sobre a estante. Entre elas cantem-se três responsórios. [6] Dois destes responsórios são ditos sem "Glória", porém, depois da terceira lição, quem está cantando diga o "Glória". [7] Quando esse começar, levantem-se logo todos de seus assentos em honra e reverência à Santíssima Trindade. [8] Leiam-se, nas Vigílias, os livros de autoria divina, tanto do Antigo como do Novo Testamento, e também as exposições que sobre eles fizeram os Padres católicos conhecidos e ortodoxos. [9] A essas três lições com seus responsórios, sigam-se os seis salmos restantes cantados com "Aleluia". [10] Vêm, em seguida, a lição do Apóstolo, que deve ser recitada de cor, o versículo e a súplica da litania, isto é, "Kyrie eleison", [11] e assim terminem as Vigílias noturnas.
Um primeiro ponto a ser destacado é que rezamos por 3 vezes o versículo: “Abri Senhor os meus lábios e minha boca anunciará o vosso louvor”. Isto quer dizer que depois do silêncio da noite, as primeiras palavras que devem ser ditas ao clarear um novo dia devem ser somente palavras de louvor e de ação de graças ao Deus de toda a consolação; e quando São Bento escreve que deve ser “repetido 3 vezes” entenda-se como: “deve ser lido, repetido, decorado...”. Grande parte dos monges e monjas do tempo de São Bento não sabiam ler ou escrever. Precisavam saber as lições dos ofícios “de cor”. Por todo o Capítulo 9 observamos uma “estrutura para a oração comunitária”, quais salmos deverão ser ditos, as leituras e os responsórios; um olhar menos atento poderia dizer que aqui temos somente um conjunto de “regras” do que pode ou não pode, do que deve ou não deve ser dito. Mas vai muito mais além disso. No versículo 7 desse capítulo, vemos os gestos corporais. Literalmente um “senta e levanta”. Tudo isso para que os monges não dormissem ou cochilassem. Mais do que isso até: reverência à Santíssima Trindade! É preciso saber que não somente no momento do ofício divino o monge está diante de Deus. São Bento já alerta em outro momento que “o monge está a todo momento diante dos olhos de Deus e suas ações são constantemente reveladas a Ele pelos seus anjos”. Por trás de uma simples atitude corporal de sentar-se e levantar-se temos uma atitude pascal: estar atento, em alerta!
Ao fazer uma divisão dos salmos, responsórios e antífonas, ao dividir as tarefas do coro entre os membros da comunidade se isso for possível, São Bento deseja agregar ao ofício monástico beleza: Deus merece o nosso melhor! Não por vaidade ou para aparecer ou se destacar. Tudo aquilo que o monge realiza ao recitar o ofício divino deve ser feito com esmero e cuidado, com beleza e capricho pois é feito para Deus! São Bento sugere ainda diferentes melodias para se cantar os salmos e os responsórios . Cada um dos monges da comunidade fazia aquilo que sabia de melhor e assim, criava-se uma atmosfera de ritmo e harmonia. Mais à frente no Capítulo 38 vai sugerir que “quem ler tem que edificar aos seus ouvintes”. Insistimos neste ponto: tem que ser bonito porque é para Deus. Podemos dizer que São Bento ao propor seu “ora et labora” desejaria que o monge enxergasse no trabalho uma ferramenta necessária para o seu sustento material e corporal, mas a oração era o seu dever primeiro. No mosteiro existirão momentos para o trabalho e momentos para a oração e esta sim, deverá ser o que centraliza grande parte do tempo do monge nos claustros do mosteiro. Para o monge e para a monja que já estão inseridos nesta realidade quotidianamente pelo fato de habitarem no mosteiro isso pode ser um pouco mais fácil do que para os oblatos, mais isso não deve desanimá-los, absolutamente. Muito pelo contrário. Deve ser fonte de ânimo e de perseverança. O oblato deverá sempre dentro de suas possibilidades estar em contato com o ofício divino e assim, em comunhão espiritual com sua comunidade monástica.
Um outro ponto importante deste capítulo 9 é a “ortodoxia”, a fidelidade à Santa Igreja. No versículo 8 observamos todo o cuidado de São Bento ao propor as leituras para os momentos de oração tendo em vista o combate às heresias tão presentes em seu tempo principalmente através dos evangelhos apócrifos. Ler somente aquilo que explica às sagradas escrituras e está de acordo com o que ensina o Santo Magistério da Igreja.
Nas entrelinhas São Bento é muito humano com seus monges, preocupa-se com o “ser humano” e com suas necessidades físicas. Lembra-nos constantemente que nossa vida gira em torno da Páscoa de Nosso Senhor e que devemos sempre ter a devida reverência para com a Santíssima Trindade. Devemos estar vigilantes. Teremos a nossa “páscoa” pois ela é caminho para a vida eterna. E deveremos chegar “todos juntos” na morada que Ele mesmo nos preparou. A preocupação de São Bento com a salvação de seus monges e monjas, a reverência à Santíssima Trindade e a Páscoa de Nosso Senhor irão aparecer mesmo que sutilmente ao longo de todo o “código litúrgico” por ele proposto. O oblato pode pensar no quanto é difícil para ele estando no mundo realizar todas estas coisas concomitantemente a todos os seus outros afazeres. Porém deve sempre pensar: “o que tenho de melhor eu o ofereço para Deus”.
Como nossa “tarefa”, ao longo deste mês até a próxima reunião, procuremos ler os salmos 3 e 94 que serão tema dos próximos encontros. Até lá se Deus assim nos permitir.
U.I.O.G.D.
Transcrição de Ir. Michael, obl. OSB (Fernando)
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